Ilustração e texto completo do Contardo Calligaris para a Folha de S.Paulo: "Outra causa da morte de Miguel"

Ilustração para a Folha de S.Paulo por Luciano Salles
Olá, como vai?

No meu Instagram (que faço o convite agora para seguir clicando aqui), publiquei a ilustração da semana na Folha de S.Paulo e para o texto do parceiro de coluna, Contardo Calligaris.

Ali avisava que o todo conteúdo do texto seria inserido aqui pois acho válido que muitos tenham acesso.

Eu não sou pai, tenho três sobrinhos e, mesmo assim, me coloquei no lugar (seja em qual for o lugar) no caso do menino Miguel, que despencou de um prédio no Recife.

Segue o texto para reflexão:

"Mais uma causa da morte de Miguel

No dia 2 de junho, no Recife (PE), um menino de 5 anos, Miguel Otávio, caiu do nono andar de um prédio de alto padrão e morreu.

Miguel estava naquele prédio acompanhando a mãe, Mirtes Renata, empregada doméstica de uma família composta por Sari Corte Real, Sérgio Hacker, prefeito de Tamandaré (no litoral do Estado) e os dois filhos pequenos do casal.

Mirtes desceu para passear com a cachorra da família. Enquanto isso, uma manicure estava fazendo a unha de Sari.

Miguel queria fugir atrás da mãe e da cachorra, mas era uma saída rápida, apressada _ mais simples Miguel esperar em casa.

O vídeo da câmera de segurança mostra que Miguel entrou no elevador. Houve uma troca dele com Sari (a câmera não capta som _ presume-se que fosse para convencer Miguel a ficar no apartamento). No fim, Sari apertou o botão da cobertura  _ suponho que fosse um lugar onde Miguel gostasse de brincar. Miguel, sozinho no elevador, apertou vários botões e desceu no nono andar, onde talvez ele já soubesse que a laje do ar condicionado era acessível. Foi para lá que ele foi e de lá despencou. Será que viu a mãe de longe, tentou chamá-la?

A história parece feita para meditar sobre o sistema brasileiro de castas: a necessidade de Mirtes levar o filho para o trabalho; a pouca paciência (como disse a própria Mirtes) de Sari, que deixou Miguel subir pelo elevador; o estranho paralelo entre o cuidado com a cachorra e o não-cuidado com Miguel.

A isso se acrescentou a descoberta de que Mirtes (mais a mãe dela e outra funcionária) eram de fato empregadas pela prefeitura de Tamandaré, como se o privilégio, na Brasil, sempre estivesse ligado a alguma improbidade administrativa _ por exemplo, um funcionário-fantasma pago com dinheiro público.
Assisti várias vezes ao vídeo do elevador. Naqueles breves instantes se decidiu a morte de Miguel. O que faltou para que ele se salvasse?

Ao receber repórteres do G1 de Pernambuco na casa dela, Mirtes comenta: “As paredes estão um pouco descascadas porque ele pegava as ferramentazinhas e queria brincar de pedreiro”.  E comenta que quando ela não podia levar o filho, Miguel aprontava: “subia na grade, ficava gritando mamãe, me leva, me leva… Era cheio de energia”.

Cuidado: a “energia” de Miguel não foi responsável pela morte dele. Miguel morreu um pouco por pertencer a uma classe da qual os privilegiados fazem pouco caso e, mais ainda, ele morreu porque ao redor dele estavam faltando adultos, cruelmente.

O que significa adulto neste caso? Simples: um adulto é alguém que não é dirigido pelo medo de perder o amor da criança e, portanto, não está com medo de frustrá-la.

Eu cresci num lar privilegiado, mas em que adultos havia de sobra. Uma situação inversa à de Miguel pode servir de exemplo. Imaginemos que minha mãe saísse e eu fizesse uma birra e me enfiasse no elevador para correr atrás dela; a empregada me puxaria pelo braço ou pela orelha para fora do elevador, e talvez acrescentasse um tapa na bunda final _ tudo sem medo de que eu a odiasse por isso e sem medo que minha mãe discordasse dela. Minha mãe, voltando, concordaria e acrescentaria uma punição, do tipo, para cama direto depois do jantar.

Voltando a Miguel, Sari foi preguiçosa porque, afinal, era “só" o filho da empregada? Ou Sari, de qualquer forma, não saberia puxá-lo do elevador no grito ou na marra porque ela, Sari, não é uma adulta, ou seja, está com medo de frustrar uma criança?

Miguel morreu de uma incapacidade social de dizer não a um menino de 5 anos que pode aprontar porque sabe que os adultos todos, mãe ou “patroa”, vão acabar cedendo.

Em algum momento, a partir da segunda metade do século passado, perdemos a capacidade de criar e educar, porque a frustração infantil se tornou, para nós, um espetáculo insuportável.

O amor moderno pelas crianças é perfeitamente narcisista: queremos vê-las “felizes" como gostaríamos de ter sido e não fomos. Queremos que encenem a felicidade à qual aspirávamos e que não conseguimos. Elas são o remédio contra nossas frustrações. Como poderíamos frustrá-las?

Explicação sociológica complementar. As famílias pós-divórcio são o ambiente ideal para que se instaure uma luta em que exigir ou frustrar está fora de questão, porque vai que a criança goste mais dos outros?

Em suma, a desigualdade social não ajudou. Mas, antes disso, Miguel morreu por viver num mundo com poucos adultos."

Por Contardo Calligaris, em 18 de junho 2020, para a Folha de S.Paulo

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