A entrevista com as melhores perguntas que já respondi

Olá, como vai?

Essa semana foi liberada a entrevista que concedi ao escritor Carlos Freitas. Conheci o autor em uma oficina de quadrinhos (ou de desenho) que coordenei no SESC Ribeirão Preto.
Há poucos dias o Carlos entrou em contato perguntando se gostaria de conceder de uma entrevista para seu site e é claro que concordei; o que não imaginava é que receberia uma entrevista com perguntas tão bem elaboradas.

Preferi responder os belos questionamentos através de áudio pois assim a espontaneidade estaria ali. O próprio Carlos transcreveu toda prosa.

Deixo aqui o link para o site do Carlos Freitas (que aliás é uma ilha de reflexão) para conhecer o espaço e para ler a entrevista completa. Logo abaixo você também consegue fazer a leitura.

O caminho está aberto se quiser deixar suas ponderações, pensamentos e o que mais desejar nos comentários.

Um abraço.

Luciano Salles.

entreVISTA do Artista – Luciano Salles

Luciano VISTO por Luciano

Luciano Salles é quadrinista e ilustrador da Folha de São Paulo. Autor da história em quadrinhos Grand Prix Metanoia (2019, publicação independente/Catarse) EUDAIMONIA (2017, publicação independente/Catarse), Limiar: Dark Matter (2015, publicação independente), L’Amour: 12 oz (2014, Editora MINO), O Quarto Vivente (2013, publicação independente) e da HQzine Luzcia, a Dona do Boteco (2012, publicação independente).

Crédito da foto: Leila Penteado

*** Entrevista realizada via WhatsApp.

Para começar nosso bate papo, conte-nos um pouco do seu processo de criação. De onde vêm suas ideias e inspirações? Você cultiva hábitos para se manter criativo?

Bom Carlos, sempre que me fazem essa pergunta eu digo que as minhas ideias e inspirações resultam do fato de eu ser uma pessoa observadora. Eu observo muito as situações, as falas, detalhes que estão acontecendo, alguma coisa que estou vivendo. Observo e questiono os motivos de algumas coisas e isso é algo natural que eu sempre cultivei. Se seu cultivo alguma coisa, é esse observar. Eu costumo aproveitar as ideias desse processo de observação. Eu penso que para quem é desenhista, ilustrador, essa é uma boa técnica, se é que posso chamar assim, para perceber ideias.

Muitos são os mestres que nos inspiram durante nossa trajetória em diversas fases da vida. Quem são seus mestres ou artistas preferidos atualmente? Além dos atuais, quais artistas e/ou escritores estão sempre presentes quando você se coloca a pensar sobre um novo projeto?

Quando estou em um novo projeto, é natural que as minhas influências venham sem que eu precise ficar relembrando-as. Os mestres que me influenciam no ato de desenhar, vêm dos quadrinhos. Na verdade são três “M“s. O principal é o Moebius, em relação à plasticidade do desenho, até onde é possível chegar, de uma forma totalmente livre com o desenho. Frank Miller é outro que me influenciou bastante. Acho que é bem visível a influência de Frank Miller no meu traço. Talvez ele tenha influenciado meu trabalho até mais do que o próprio Moebius. O Lourenço Mutarelli também me influenciou bastante. Falo dos quadrinhos do Mutarelli. O “Transubstanciação”, o compêndio do “Diomedes” e até mesmo sua literatura. Mas para criar minhas histórias, as referências são cinematográficas. David Lynch está em mim, no meu jeito de criar e de pensar.

“Renovar o amor que você tem por alguma coisa principalmente em um momento como esse”

Como você tem visto esse momento de privação física e isolamento social? De que maneira você está interagindo com essa nova realidade que se apresenta sem nos pedir licença?

Esse momento de privação, algo imputado em nós, é importante para perceber nossa pequenez diante de tudo. Você vê, um vírus, de uma suposta gripe. Eu tenho visto esse momento como algo que temos que obedecer e ficar em casa, para não adoecer, fazendo com que a probabilidade de pegar o vírus seja menor, e para diminuir a probabilidade de contaminar outras pessoas, caso eu seja contaminado e for assintomático ou demorar para manifestar esses sintomas e colocar outros em risco. É ter empatia. Está difícil interagir com essa nova realidade. Eu sinto meu desenho um pouco travado. Eu percebo que meu desenho, algumas vezes, não está tão bem encaixado com os textos que ilustro para a Folha de São Paulo. Cheguei a comentar com o Contardo Calligaris (eu ilustro sua coluna na Folha), que eu havia achado que uma de minhas últimas ilustrações não tinha se encaixado muito bem, mas ele gostou bastante da ilustração e achou que havia se encaixado sim. De qualquer forma eu tenho produzido bem menos. Cheguei a parar totalmente um novo quadrinho que eu estava produzindo. Com essa redução no ritmo de produção acabei me voltando muito para a leitura. Estou lendo bastante, estudando bastante e, além das demandas, estou procurando me forçar a desenhar. Até para exercer, de certa forma, algo que eu talvez nunca tenha dito em uma entrevista, renovar meu amor pelo desenho e isso é uma coisa que temos que fazer sempre. Renovar o amor que você tem por alguma coisa, principalmente em um momento como esse.

De que formas essa nova realidade compulsória reflete-se no seu trabalho, em sua arte?

Eu sinto que alguma coisa está bem mais travada no fluir da linha do meu traço. As minhas ideias, como eu falei, no meu processo de observação – até porque estou mais tempo isolado – esse processo parece estar mais travado. O fato dessa realidade compulsoriamente trancafiar a gente, acaba por trancafiar tudo, o corpo, a alma, e a gente tem que trabalhar isso e se você tiver a oportunidade de perceber isso, deve procurar uma terapia, uma análise, talvez conversar. Não podemos sair, mas podemos fazer, de repente, um café da tarde online para conversar, dizer o que estamos sentindo. Acho que isso é válido e ajuda muito. Enfim, essa nova realidade reflete na forma de um certo travamento na minha produção, até porque parei de produzir meu quadrinho, que era uma coisa que eu estava muito louco para fazer. Mas de qualquer forma, como eu costumo também dizer, o último que eu produzi, pode ser o último quadrinho. Então, tem aí “Grand Prix METANOIA” no mercado.

“Nós usamos o termo Fake News, mas é importante dizer que é uma notícia mentirosa. É uma mentira”

Atualmente no Brasil existe um forte movimento obscurantista derivado do recente tsunami de Fake News que assolou (e ainda assola) o país desde as últimas eleições presidenciais. Em sua opinião, quais são os riscos reais que a arte e a cultura estão correndo? O que é só cortina de fumaça e com o que devemos nos preocupar?

Essa pergunta é extremamente importante e de certa forma sofisticada para uma resposta rápida. Nós usamos o termo Fake News, mas é importante dizer que é uma notícia mentirosa. É uma mentira. E como toda mentira, se você repetir muitas e muitas vezes, acaba virando uma verdade. Esse processo, não é de hoje, já estava rolando desde 2014. O pessoal começou a perceber essa possibilidade, basta ver a eleição do Trump. Os riscos que corremos que esse movimento obscurantista, terraplanista, negacionista, me assusta muito, de verdade. Esse retrocesso é realmente perigoso porque tem muita gente que se identifica, que compra essas ideias, que assiste a um vídeo no Youtube, por exemplo, falando sbre Terra Plana e acredita de fato nisso. Usando isso como exemplo, acredito que o Youtube deveria colocar um adendo de que se trata de uma informação errada, não confirmada. Isso proporciona riscos reais para a cultura. Basta ver em que pé está o Ministério da Cultura, que teve até uma insistência em referências nazistas. O episódio do “Copo de Leite”, onde eles diziam que era para comemorar o agronegócio, as grandes safras, e depois pediram desculpas, mas de qualquer forma foram vídeos feitos e veiculados. Para ilustrar o que quero dizer, vou compartilhar uma lembrança. Quando eu tinha uns 12 ou 13 anos, jogávamos bola na rua ou em quadras, e fazíamos pequenos campeonatos entre bairros. Certa vez enfrentamos uma turma de outro bairro, com garotos da mesma idade, mas que eram fisicamente mais fortes. Eu marcava um rapaz mais forte do que eu, e num jogo eu fiz falta duas vezes nele e, sempre que fazia, pedia desculpas. Ele então me disse: “Quando você fizer a falta, não peça desculpas”. Isso me marcou desde aquela época. Depois de fazer uma falta, não adianta mais pedir desculpas. E isso está acontecendo nesse momento. Fazem um movimento e depois vêm com desculpa. E isso é um perigo.

“O meu desenho é uma reação a algo que foi proposto ou feito por alguém. O ponsicionamento político do artista sempre vai estar lá, independente dele pensar muito a respeito”

 Nosso país vive uma realidade polarizada, onde os debates não são muito claros e são carregados de passionalidade ideológica irracional e muitas vezes sem profundidade. Recentemente o filósofo brasileiro Vladimir Safatle afirmou que “na política não existe gramática comum”. O escritor Julián Fuks, vencedor de vários prêmios literários importantes, entre eles, o Jabuti, defende que a literatura contemporânea deve ser engajada, sem ser panfletária. Partindo dessa aparente sinuca de bico, você acha que ainda existe espaço para uma arte/literatura não engajada politicamente? Qual sua opinião sobre o posicionamento político do artista em sua própria arte? E como isso é possível, visto que aparentemente ninguém escuta ninguém?

Eu preciso enfatizar que sua entrevista é uma das melhores que eu já respondi. Perguntas excelentes. Em minha opinião, acredito que não tem como um artista fazer sua obra sem ser politicamente engajada, seja lá o que quer que essa obra queira abranger. Mesmo que não seja intencional, isso acontece porque o autor carrega isso nele. Fazer uma obra intencionalmente engajada sem um prévio planejamento, vira panfletária. Sendo panfletária, fica datada. Um ótimo exemplo disso é o livro 1984, de George Orwell, publicado pela primeira vez em 1949. É uma obra extremamente atual, ainda que seja distópica. É quase o que a gente está vivendo nos dias de hoje. É extremamente inteligente o livro não citar especificamente a data onde se passam os acontecimentos. E isso é uma coisa que eu procuro fazer nos trabalhos que eu faço. O único que fiz isso foi no “O Quarto Vivente” (2013). Se passa no Brasil, no ano de 2177. Foi o único quadrinho que fiz isso, mas por uma necessidade narrativa. Em nenhum outro eu coloco data ou o lugar onde se passa. Eu acho que esse é um posicionamento político que eu exerço como artista, nas minhas próprias histórias e nas minhas ilustrações. A segunda parte da pergunta é ainda mais sofisticada, pois sugere que aparentemente ninguém escuta ninguém. Não se trata de uma aparência, realmente ninguém mais ouve ninguém. Esse também é outro problema. Numa conversa com alguém, onde você está argumentando, a outra pessoa já está pensando na resposta. Ela acaba por querer somente te replicar, mesmo antes de você terminar de falar. E às vezes, nem toda fala necessita de uma reposta. Algumas vezes, o silêncio é a melhor resposta. Então eu acho que tudo que a gente produz é de certa forma engajado. Meu trabalho eu sei que é engajado, sobretudo o que faço para o jornal. É uma reação. O meu desenho é uma reação a algo que foi proposto ou feito por alguém. O pensionamento político do artista sempre vai estar lá, independente dele pensar muito a respeito. E então você consegue identificar o que o artista quis dizer, mesmo que não seja de forma clara, panfletária. Voltando ao início de sua pergunta, essa realidade polarizada, esse pensamento binário é muito raso e que leva a extremos.

Você acha que nós humanos estaremos melhor depois da pandemia? Seremos mais solidários? Ou continuaremos da mesma forma, fazendo o mesmo que fazíamos antes do Corona vírus? Que lições devemos tirar de tudo isso?

Eu não acho que nós melhoraremos depois da pandemia. Não seremos mais solidários. Ainda estamos no meio da pandemia e as pessoas continuam saindo, não usando máscara, não estão sendo solidárias. A pandemia não vai mudar nosso DNA, nosso genoma, nosso jeito de pensar, nosso cérebro ancestral de milhares de anos. Algumas poucas pessoas devem mudar, mas na prática, vamos voltar da mesma forma. Casa vez mais egoístas. Acho que a grande lição que podemos tirar dessa pandemia é como a desinformação prejudica os outros. Pegue como exemplo a Nova Zelândia e sua primeira ministra Jacinda Ardern. Mesmo sabendo que as realidades entre Brasil e Nova Zelândia são muito diferentes, é fato que eles praticamente controlaram a curva de contágio. E aqui, em meio a uma escalada da doença, já pensamos em abrir o comércio e atividades não essenciais. A maior lição que devemos tirar de tudo isso é que possamos aprender e exercer a empatia. A humanidade só vai melhorar, aos poucos, um de cada vez. Veja as duas Grandes Guerras. A Segunda Guerra Mundial ocorreu num prazo muito curto, logo depois da primeira. Foi pouquíssimo tempo entre uma e outra. O ser humano não costuma melhorar logo depois de tragédias. Existe aquele ditado russo que diz que “depois da tempestade vem a enchente”.

“Essa maldita mania de dizer que a economia precisa girar”

Em recente entrevista a um jornal de grande circulação no país, o professor Leandro Karnal afirmou que “classes média e alta enfrentam tédio, classes baixas enfrentam fome”. O que você pensa desse cenário de obrigação de ficar em casa?

Somos obrigados a ficar em casa. O governo deveria passar todas as instruções para serem replicadas para estados e municípios. São mais de 80.000 mil mortos. Se você decide, por exemplo, sair de casa para correr ou pedalar, tudo bem, mas faça isso sozinho, não em grupo. Coloque uma máscara. Muitas pessoas não tem a possibilidade de ficar em casa, pois necessita do trabalho. Quando eu compro algo para entregar em casa, tem sempre alguém que fará o trabalho de trazer até aqui. Se eu posso ter esse luxo de receber compras em casa, é porque tem alguém que trabalha para me entregar. O mínimo que eu devo fazer é lavar as mãos, colocar máscara, agradecer a pessoa, desejar a ela um bom trabalho, que ela se cuide, exercer a empatia. Temos que ficar em casa, senão vamos protelar tudo isso. Essa situação vai se arrastar. Essa maldita mania de dizer que a economia precisa girar. Quem precisa girar é o Estado. Podem falar o que quiserem sobre o pensamento liberal, mas no Brasil não é o pensamento liberal que funciona. É liberal na economia e conservador nos costumes.  É uma coisa louca isso.  O Estado existe para que nessas horas ele possa suprir o povo. Se você pode, fique em casa. Se você tem que trabalhar, tome todos os cuidados possíveis para não contaminar o próximo. Mas em algum momento, isso tem que passar. E com certeza os maiores prejudicados serão os que se encaixam nas minorias. São os que mais sofrerão.

“Todo artista tem que ter um plano B”

O poeta Ferreira Gullar uma vez disse que “a arte existe porque a vida não basta”. Como você avalia essa afirmação diante de nossa realidade atual, onde assistimos uma marcha que tenta sistematicamente sufocar a cultura no Brasil? Na sua opinião, quais os desafios que a arte e a cultura enfrentarão no mundo pós pandemia?

A arte sempre vai existir. É justamente nos momentos que tentam sufocá-la, que a arte vem com tudo. Podem tentar sufocar arte, sufocar os artistas, mas a arte reage de uma forma muito mais bela. A vida em si não tem um sentido. Eu é que dou sentido para a minha vida. Eu penso que seja nítida essa tentativa de sufocar a arte no Brasil. Querem que alguns ilustradores e chargistas da Folha de São Paulo se expliquem por causa de seus trabalhos. Basta ver como aquela charge do Aroeira causou incômodo. Em seguida houve uma imensa reação imediata de muitos outros artistas, opondo-se à toda aquela virulência. É como eu falei, a arte é uma reação ao movimento. É sempre assim. Eu acho que um dos maiores desafios que a arte e a cultura vão enfrentar num mundo pós pandemia, será encontrar uma maneira de se manterem financeiramente. Por exemplo, meus contratos firmados até a metade de 2020 foram todos cancelados. Neste momento eu tenho meu trabalho na Folha de São Paulo e minha esposa, que possui uma escola de Yoga, passou a dar aulas de dentro de casa, na modalidade online. O mercado de arte precisará sim voltar com as feiras, os eventos de quadrinho, com as pessoas comprando as obras nas lojas dos artistas. Acho que o maior desafio é o econômico para os artistas se manterem ativos. Eu mesmo já acionei um plano B, porque já se vão mais de seis meses e tudo foi cancelado. Eu tive que acionar meu plano B porque eu não quero ficar pagando para ver. Claro que eu não vou deixar de fazer quadrinhos, trabalhar para a Folha de São Paulo. Isso jamais. Mas confesso que acionei meu plano B. Todo artista tem que ter um plano B.

Para terminar… Você está trabalhando em algum projeto novo? Se sim, conte-nos um pouco sobre o que podemos esperar.

Eu estava trabalhando em um projeto novo, mas a quarentena me forçou a interrompê-lo. Meu trabalho novo é o mais recente quadrinho que eu lancei, o “Grand Prix METANOIA”, que está na loja da Amazon, e como eu já comentei, o último quadrinho que eu publiquei, pode ser meu último quadrinho. A gente não sabe o que pode acontecer daqui a uma hora, não é mesmo? Mas eu estava trabalhando num quadrinho novo, estava ficando bem legal, mas infelizmente a pandemia realmente me afetou. Estou procurando me reinventar todos os dias no meu desenho. Todos os dias eu renovo meu amor pelo meu desenho, pelas artes, pelo texto, por criar novas histórias e isso é um jeito de me manter. Pretendo procurar algumas técnicas novas para inalar novos ares. Algo novo deve surgir. Mas sem pressa, no momento certo vai acontecer. Até porque é um respeito da minha parte para com o meu leitor. Se eu vou fazer alguma coisa, que seja a melhor que eu já produzi. Não vou fazer algo apenas por fazer. Farei algo que valha o empenho da pessoa em se dedicar a ler e admirar aquele trabalho, aquele desenho. 

Acho que é isso. Agradeço a oportunidade, a entrevista. Fique bem. E você que está lendo, também fique bem. Se você tiver lendo durante a pandemia, fique em casa. E se a pandemia já passou e já temos uma vacina, não deixe de tomá-la. Um grande abraço!

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